domingo, 31 de julho de 2016

autopoiesis

Certo dia de lua minguante, em abril, escrevi que

"A vida não vem em ondas.
A vida vem em ciclos.
Há quem diga que é a mesma coisa: 'ondas são ciclos'. Não sei. Pra mim as ondas são independentes e únicas. Os ciclos iniciam e terminam no mesmo lugar e se repetem. As dores e alegrias parecem únicas e novas, mas elas já são velhas conhecidas, só aparecem com novas roupas (ou com as velhas - irreconhecíveis de tão velhas).
A solução parece ser deixar passar. Sentir a dor ou a alegria, explorá-las, mas deixar passar. Não se prenda às emoções. Se prenda ao material, ao que existe, ao presente. Se prenda ao que é real."

Ainda estou na dúvida se a vida vem em ondas ou em ciclos.

A despeito da natureza repetitiva da vida, todos os dias nós podemos escolher mudar. E a mudança implica, quase invariavelmente, em falhas que vão te levar para o mesmo ponto de onde você começou.

Parar, respirar, se perdoar, planejar e tentar novamente.

E, afinal, não importa se voltamos para o mesmo ponto quando já não somos os mesmos. É uma autopoiese que te refaz a cada dia um pouquinho diferente. Somos meio cíclicos, mas também somos ondas. O que importa é que estamos sempre em movimento.

sábado, 30 de julho de 2016

abrir os olhos para dentro

A cebola só despertou aquilo que há tanto tanto queria e tinha que sair de mim. Os olhos arderam e eu já não conseguia mantê-los abertos. Fui para um lugar ventilado, tentei manter a calma e ignorar aquela sensação ruim.

Imaginei qual seria a primeira imagem que veria ao abrir os olhos, e na minha mente vi amarelo e quente, o vento que batia no rosto. Talvez fosse a minha casa, a minha infância, a minha segurança. Abri devagar, como se não quisesse enxergar, mas ao mesmo tempo esperando aquele amarelo quente. Era verde e frio, as cores eram menos vivas do que eram na minha mente. Era uma realidade crua e imutável. Ali estava eu, em pé, sozinha, os olhos marejados, olhando para aquela erva sem nome que crescia forte na horta. Não sei porque era triste, mas algo me doía. A minha realidade construída não era o que eu queria. E o que eu queria?

Voltei para a cozinha. O arroz estava queimando, apaguei o fogo. "Será que o frango está pronto?" Espetei um pedaço com o garfo e tentei rasgar a carne que estava rígida como a minha própria. Por um descuido, como por obra de um destino que parecia me odiar, aquele pedaço foi ao chão e, no desespero pela sujeira, pela comida desperdiçada, fui também ao chão para apanhar e jogar aquele pedaço no lixo, apagar aquela imagem tão viva da minha incompetência. "Que burra! Que burra que você é!" Queimei os dedos. "Que burra! Que burra que é você!" Os olhos já não secavam. Ao fundo eu ouvia a Tulipa dizer "um dia você vai descansar sem perceber, vai ser natural e legal adormecer, viver e descansar". Eu só queria descansar. Vi minha própria morte e me deliciei com a ideia de morrer logo, morrer depressa e acabar com a dor de viver, de ser, só. A cebola só despertou aquilo que há tanto queria e tinha que sair de mim.

As lágrimas me impediam de ver, embaçavam a luz e, ao mesmo tempo, me faziam olhar o que eu não queria ver: olhei pra dentro. Eu vi a bagunça dentro de mim. O problema não era a sujeira que fiz no chão, não era o amor não correspondido, não era o cansaço físico, não era o verde frio, não era a saudade, não era o tempo que passava depressa, não era estar sozinha. Dentro de mim tudo parecia amorfo. Não era, mas eu só via isso: amorfo. "Quem é você? O que você quer?" A resposta só vinha de fora. "Eu quero que 'eles' me aceitem, me aprovem, me amem, cuidem de mim, me acompanhem, segurem minha mão." As lágrimas escureciam os olhos, bagunçavam o coração mas iluminavam a mente: "O que você quer está dentro. O que você é já está aí dentro de você, é só abrir os olhos pra dentro e enxergar de verdade. Não basta ver."

Eu sempre digo que a dor aponta para onde devemos olhar. "Sentir a dor é sentir a própria cura" Eu tinha que olhar pra mim, era estar sozinha que me doía. Eu estava sozinha com aquela que desconhecia, aquela mulher que me dava medo. Eu não sabia por onde começar, a dor de enxergar era grande demais, a bagunça de dentro incomodava, eu escutava o barulho do meu coração e a cabeça latejava com a verdade que escorria. Eu não sabia. Eu não sabia. Eu não sei.

Estendi a mão pra ela, pra dentro de mim. A aceitação, a aprovação, o amor, o cuidado e a companhia estavam ali e tudo passou a ter uma forma, ainda indefinida, mas bonita e única. Era a minha forma o que eu procurava, e eu estava ali para me ajudar a enxergar.